outubro 16, 2007

Pulsos cortados


Sexta-feira passada, às seis da manhã, toca o telemóvel. É de casa.

- Ai, patroinha, pelo amor de Deus!, venha correndo prá casa!

- Que foi, Pazinha? Faltou a luz? – perguntei, já habituada aos percalços de faltar a luz durante horas seguidas, de os dois geradores falharem quando mais se precisa deles (o que é quase sempre), de não haver diesel suficiente na fazenda (apesar de nunca sairmos sem deixar pelo menos 200 litros de reserva - ou é evaporação ou é o alentejano que o rouba para vender...) e, consequentemente, ter provavelmente 180 mil alevinos a boiar de boca aberta nos berçários, com falta de oxigénio. Começei a revirar a carteira à procura da minha fiel mini-agenda telefónica, que me acompanha até quando tomo banho na praia, não vá o diabo tecê-las, preparada para começar o rosário dos intermináveis telefonemas para os quatro escritórios da Cemar (a EDP cá do sítio), cujos funcionários vou ter que insultar e ameaçar com visitas de advogados de Brasília, processos judiciais, queixas à minha embaixada que provocarão no mínimo um incidente internacional, e até com o fogo do inferno, normalmente por esta ordem, antes que se dignem a levantar o corpanzil da rede, largar a cervejinha e a amante menor de idade, desligar a televisão e ir fazer aquilo para que são pagos, que é, por mais estranho que isso lhes pareça, trabalhar.

- Não, patroinha, é pió! – pronto, é grave, pensei: os cães soltaram-se e mataram-se um ao outro (se isto acontecer e fôr culpa dela, ela bem sabe que pode correr até Porto Rico que eu apanho-a, esfolo-a, esfrego-a com coca-cola e enterro-a viva perto de um formigueiro), ou estão gravemente feridos e eu estou a duas horas de casa mais duas horas para chegar ao veterinário e onde é que eu tenho o telefone do taxista e ai meu deus o que é que aconteceu?! – É bem pió, patroinha! – e larga num chorrilho de evocação de santos e santas de quem eu nunca ouvi falar, até que a consigo interromper - Foi o meu minino qui chegou aqui falando que o Raimundo cortou os pulso, gritando qui não tem mais muié! Ai meu Santo Expedito mi valha (este conheço, é o das causas perdidas), qué qu’eu faço???

Pausa para respirar fundo e tomar anotação mental: se é que não morreu já, mandar espancar este estupôr, que não merece a mulher que tem, os filhos que tem e, principalmente, a vida boa que tem, enquanto esta desgraçada se esfalfa a trabalhar para dar de comer aos filhos e a ele e eu me encho de paciência quando ele vem cá tratar do jardim, mandria o dia inteiro, pede suminhos frescos de cinco em cinco minutos e eu ainda tenho que lhe pagar a diária.

Não cortou pulsos nenhuns, que ele é exibicionista mas não é parvo, mas cortou o braço todo a facão menos os pulsos. Um inútil, orgulhoso, burro, putanheiro, cachaçeiro e preguiçoso que, caso inédito, já teve TRÊS oportunidades de vir para a fazenda para um trabalho levezinho e, portanto, de se tornar no chefe de uma família nada mal de vida (dois salários inteirinhos mais os subsídios do Lula, coisa única cá no burgo) e, das três vezes, não aguentou nem duas semanas.

9 comentários:

Capitão-Mor disse...

Vejo que já agarrou bem o sotaque nordestino! :)

ana v. disse...

Miúda, que dramalhões para aí vão! E a mulher do Raimundo, também teve brinde de facão? É que eles, normalmente, começam pelas muiés...

Mad disse...

Não, isto foi só fogo de vista e resultado de uma bebedeira monumental. O idiota cortou-se todo e fez sangue que se fartou, mas conseguiu levar só uns pontitos. Até o médico lhe disse, a rir, que ele sabia o que estava a fazer. E ele não toca na Paizinha, porque acho que tem medo de nós. Sabe que ia preso para o resto da vida... No fundo, no fundo, ele faz isto porque gosta dela e tem ciúmes dela.

Maria Feliz disse...

Amiga,

Ora aí está o protótipo de um nordestino que se preze... faz pouco (ou nenhum), vive à conta e ainda reclama da vida, enquanto se embebeda e se mete em confusões e azucrina a paciência às pessoas de bem.

Tenho pena da Pazinha, mas pelo menos ela tem-vos a vocês!

Beijo grande para todos

Anónimo disse...

"No fundo, no fundo ele faz isto porque gosta dela e tem ciúmes dela"

Deu-me uma vontade de rir

O que seria se esse típico nordestino não gostasse da Pazinha!

sorriso grande

Mad disse...

Marta, não esquecer que estamos a falar de um nordestino completamente bronco. O homem é doido por ela! Nenhum nordestino faria estas figuras se não fosse por amor!

Ai, o amôri pode ser tão doentio às vezes... :)

ana v. disse...

Ah, não percebi que ele era o marido da Pazinha! Diz ao Raimundo que, se ele lhe toca, até eu me meto num avião para dar cabo dele!
E o que é que te deu agora para esses argumentos "no fundo, no fundo, é porque gosta dela"?... com essa desculpa da treta é que eles fazem a vida num inferno às mulheres, e ainda passam por desgraçadinhos! A mim não me convencem, os Raimundos. Dá um beijo à Pazinha por mim.

Mad disse...

Ana, claro que não é argumento e muito menos menos serve como desculpa (era o que faltava!, tu conheces-me), é apenas uma constatação. E é uma pena, porque ele se não bebesse, não era má pessoa de todo. Quer dizer, ele cozinha, toma conta dos filhos... podia ser pior, como diz a Pazinha. Não pode é chegar ao pé da pinga...

ana v. disse...

Ó desgraça, a pinga! E aí não é fraquinha, é cachaça! Bolas...
Mesmo assim, olho na Pazinha que é muito melhor do que ele.

bjs