março 05, 2009

A ponta do iceberg


Quando dantes ouvia falar em violência doméstica achava sempre que era uma coisa muito abstracta que só acontecia lá para os confins do Portugalinho bem profundo, em sítios isolados pela geografia e o clima, e entre gente rude, bruta, ignorante, revoltada com condições de vida impossíveis, desgraças, recalcamentos e curriculum familiar a condizer.

Mais tarde aprendi que o problema é transversal à densidade populacional e às classes sociais. Que se manifesta tanto em aldeias perdidas nas serras como em centros urbanos. Tanto em camponeses brutos e alcoolizados há gerações como em gente civilizada que até ostenta nome pomposo, educação superior, carreira profissional sólida e conta bancária bochechuda. Se também carregam exemplo familiar que justifique o seu comportamento, não sei e nem me interessa. Provavelmente sim, não que seja obrigatório.

Hoje em dia, vindas de pessoas em cujo discernimento até confio, oiço descrições de cenas, dignas de Fellini, de tareias portas adentro, protagonizadas por gente a quem jamais ouviria dizer merda em público. Daquelas que deixam marcas que se cobrem com maquilhagem, golas altas e mangas compridas no dia seguinte. Daquelas que não têm justificação, explicação, sequer fazem sentido. Daquelas que se vê logo que começaram por um simples estalo, dado num dia de ânimos exaltados em que se perde a cabeça, e que evoluiu para cavalarias mais altas. Com a desculpa de que foi só aquela vez, coitado, eu até mereci - o caraças! Porque aquela vez é a pior de todas, é a porta aberta, é aquela do a ver se pega, é a prova cabal de que se se dá aquela se quer dar mais e se se aguenta aquela se quer levar mais.

Que raio de merda de psicologia é esta???
.

24 comentários:

Teresa disse...

É um grande engano associar a violência doméstica a lares carenciados e a gente pouco instruída. Idem para o incesto.

Uma vez, num jantar, conheci uma assistente social da câmara de Cascais e ficámos imenso tempo a conversar. As coisas que ela me contou deixaram-me de cabelos em pé. Claro que não referiu nomes, há um código deontológico. Mas garantiu-me que muitas dessas histórias se tinham passado com nomes bem sonantes, possivelmente alguns deles eu até os conheceria pessoalmente... Histórias de violência, histórias de incesto, de abuso de crianças.

Nunca sabemos. E só chegamos a saber as histórias que vêm a lume, quando a vítima denuncia. Isso é apenas a ponta do iceberg.

Mad disse...

Pois é, mas é exactamente isso que assusta, não é?

Luna disse...

Eu concordo ctg... n é só nos lares carenciados e com mais problemas que isso acontece. acontece em mtos outros lares, de classes superiores, onde aparentemente tudo está bem... mas no fundo n está.
e, tal como disseste, o problema é mesmo essa 1ª vez... se se deixa acontecer, é para n parar mais, infelizmente!
bj

Mad disse...

Olá, Luna
Mais uma vez, é isso que assusta. Nos lares está tudo bem. Mas o que é que não está bem, afinal???

filos disse...

É uma verdade que a violência não conhece classes sociais nem instrução. Infelizmente é assim! E tens razão, basta a primeira vez! Sabes de que falo. E não podemos esquecer que a tareia é apenas uma das formas desta violência. Porque há as outras, por vezes bem piores porque vão atacando por dentro, lentamente, sem deixar marcas visíveis. Não sei quais as piores! Porque a violência silenciosa também mata, mas mais devagarinho. Leva ao desepero, à total perda de auto-estima,à loucura... acredita!

Mad disse...

Acredito, a sério que acredito. Sei do que falas? Talvez. Ou não. Mas eu falo de tanta coisa... se não fosse tanta coisa provavelmente não falava.
Bjs.

Mad disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joanissima disse...

Se eu te contasse das coisas que eu sei... : (

Artur disse...

Eu estou farto de ouvir falar sobre o tema e nunca conheci nenhum caso. Confesso que é uma coisa que me faz confusão: quem é o pai ou irmão ou amigo que fica impávido com uma situação destas? Faz-me muita, mas muita confusão.

Mad disse...

Joana,
Sabemos todos. Normalmente sabemos é tarde demais, quando já está resolvido, discutido e arrumado.

Artur,
Nem sabes a sorte que tens. A sério. E tens carradas de razão nisso que dizes. Mas há alguns que ficam impávidos (mas não serenos, não acredito), mas que mesmo assim não se metem. Meter-se não é fácil. Eu metia-me de certeza, tivesse eu apanhado algumas das situaçoes que conheço no auge.
Bjs.

Anónimo disse...

É a da vergonha de admitir q está com um energúmeno primitivo... a vergonha tem matado muitas mulheres de classes mais elevadas... :(

Paulo disse...

Há uns dias fui jantar com uma amiga aqui ao pé de casa e, quando entrámos no restaurante, vimos sentada uma actriz da nossa praça, nossa vizinha, com a cara feita num bolo, quase irreconhecível de tão inchada e negra. Contou-nos que tinha sido agredida pelo namorado.

anónimo disse...

para mim, pás, pás!
com jeitinho, claro!
(eu corrigiria o "coitado" e passaria a"coitado/coitada"-a violência doméstica não é necessariamente masculina ou então ainda te falta ouvir mais "estórias"!)

Fatyly disse...

Um flagelo que sempre houve, há e haverá em todas as classes.
Ao longo da minha vida conheci vários casos que chegadas as denúncias às autoridades, elas próprias ainda com resquícios salazaristas tentavam dizer que "é seu marido, minha senhora". Depois a coisa foi mudando e já há um atendimento eficaz quer no hospital, quer nas autoridades ou associações de apoio à vítima.
O pior de tudo isto é pensar e constatar que a maioria retira as queixas, por medo? por falta de meios económicos? por gostarem demais? Todos estes cenários se enquadram nesses casos.
A família tem um papel preponderante, como os vizinhos e até amigos.
Ao longo dos meus trinta e poucos anos de serviço vi coisa que nem te passa pela cabeça, inclusive homens sofridos igualmente pela mesma violência por parte delas.
Olhando para trás e por vivência na pele e na alma de violência psicológica se me perguntares porque aguentaste tanto? Vários factores Mad e há sempre um que se sobrepõe a todos os outros: amar demais. Pois é e afinal o medo da fome (porque passei muita na guerra e no após guerra) e com duas filhas pequenas, tudo contribuiu.
Mas, sendo eu massa da terra vermelha, optimista e alegre parti e pus um ponto final.
Ainda estava no Brasil quando ele tentou a primeira bofetada e lembro-me do que lhe atirei na hora: uma travessa de arroz de tomate e peixe frito.
Nunca me tocou mas verbalmente? bom...já lá vão 18 anos e ele já morreu há 9, e aí fiquei enfurecida porque deveria ter vivido mais para ver até onde levei as filhas e sózinha, como sempre estive e estava e estou:)

Entra aqui a psicologia que nunca funciona se não houver estruturas governamentais que impeçam de os(as) agressores continuarem à solta e a fazer das suas mesmo depois de condenados.

Hoje tenho as filhas nos seus ninhos e eles sabem que eu nunca me meti nas suas vidas, que não admito agressões fisicas e psicológicas porque há imensos caminhos para solução de um problema quando deixarem de funcionar como casal, que viram a minha experiência...e afirmo em alto e bom som: sou boa, amiga, confidente, conselheira, mãe, pai e sogra...mas que saltaria todas as autoridades e dar-lhe-ias "o arroz" com as minhas próprias mãos.

Só podemos entender um pouco mais quando nos presdipomos a entrar no cenário, ou tristemente sendo actizes ou actores desse filme de horror.

Não me calo, denuncio, chamo as autoridades sempre que me deparo com a "violência doméstica".

Mesmo assim e tendo passado o que passei, sei que há muitos e muitos homens com "H" grande!

Um beijo e um resto de bom dia

Fatyly disse...

Só mais uma coisinha: depois de um divórcio simples e de comum acordo sem nada para dividir, nunca mais mais me incomodou e começou a ser um pai um pouco mais presente...mas já foi tarde, tarde demais e sei que morreu em paz por ter as filhas por perto, muito contrariadas mas estou bem comigo própria porque tentei que elas fossem sempre ao hospital, já que o problema foi comigo e nunca com elas.
Até nisso...homens e mulheres metem os pés pelas mãos, embora saiba que há filhos que sofrem as mesmas sevícias, o que não ocorreu no meu caso.

Mad disse...

PKB,
Talvez tenhas razão.

Paulo,
Incrível.

Anónimo,
Também, mas a percentagem não é sequer parecida.

Fatyly,
És uma grande mulher.

Anónimo disse...

Concordo ali com o anonimo. Num debate de um fenomeno que assola minorias mas nao só, opinioes tendenciosas nao ajudam muito.

Posso estar enganado mas o texto (e alguns cometarios) soam meio sexistas. Se calhar outra minoria a merecer debate...

On a different note, cachopa eu bem te disse que sair do Brasil seria uma óptima decisao. Agora,para Portugal ??!!!! A isencao e desconhecimeto graciosamente concedidos por 9 anos de ausencia nao vao durar pra sempre :) Um dia destes acordas e descobres o verdadeiro país.

nf

Mad disse...

nf,

Tens razão, em parte. Mas o problema da violência exercida sobre as mulheres é muito maior, sabes bem disso. Por acaso tb conheço um caso ao contrário, mas é só um e tem mais contornos de fantasia sexual que outra coisa.

Quanto ao segundo assunto, durante anos, e como quase todos os tugas, eu tb achava que o "estranjeiro" é que era bom. Agora digo "depende" porque tb vejo as coisas boas que Portugal tem (e são muitas). Não me parece que volte à antiga forma, nem daqui a um milhão de anos :D

Anónimo disse...

Mad,

Nao me quero fazer entender de forma errada: nao há nada de errado com Portugal. O grande problema está mesmo nesse cancro que sao os portuguesinhos (vasta e esmagadora maioria).

Só volto para esse país com um canhao apaontado á nuca!

Quanto ao primeiro assunto, vale a pena pedir os contactos desse "caso ao contrário" ?

nf

Su disse...

Quando o homem que amamos faz uma coisa tão horrivel como nos bater, há cá dentro qualquer coisa que muda de lugar e perdemos a razão... penso que começamos a desculpar o acto, exactamente por não conseguirmos admitir que amamos um monstro.

Vivi assim há muitos anos atrás, numa outra vida, a sentir aquela dor vezes sem conta. Um dia saí daquele estado de submissão e domínio afectivo e disse "nunca mais!". E nunca mais.

O processo foi amnistiado, o cadastro dele continuou imaculado, eu apanhei-me do chão e percebi o quão perto de nós estas coisas podem acontecer...

Beijinhos! Mais um óptimo post!

Mad disse...

nf (tu tens nome de gente?),

Se achas que os portuguesinhos são um cancro, havias de conhecer os brasileiros :DDDDDDDDDDD
Qto ao primeiro assunto, NÃO :)

Su,

Quando o homem que amamos faz uma coisa tão horrivel como nos bater, (...).
NÃO. NÃO. NÃO MESMO. Deixa-me corrigir a frase: Quando o homem que amamos (...) deixamos de o amar. Ponto. Não há alínea b, pelo menos para mim.

Talvez eu diga isto porque tenho 43 anos, talvez agora seja fácil falar, mas eu conheço-me. NUNCA, JAMAIS, EM TEMPO ALGUM.

Um beijo, querida, e parabéns a TI, que caíste em pé.

Diabba disse...

Tu não fazes mesmo ideia nenhuma da miséria que nos cerca.

Por isso é que eu sou atenta a pequenos (ou pequenissimos) pormenores, e quase que adivinho quando há um caso desses.

Mas o pior é quando adivinho, quero ajudar e não tenho como, pois a vitima não se "descose"... ai ai

enxofre

Mas há quem se revolte. Lê aqui:

http://infernodadiabba.blogspot.com/2008/05/violncia-domstica-2.html

Mad disse...

Eu sei, ou melhor dizendo, tenho essa noção. Eu vi isso em ti. Tu disseste-me isso. Tu foste uma das fagulhas que despoletaste (dá-le, Teresa!) este post. Uma das, note-se.

Su disse...

Claro, Mad, claro que deixamos de amar! Acaba tudo no primeiro momento, tens toda a razão! Mas no momento, e por qualquer razão inexplicável, aquilo é tão monstruoso que a nossa cabeça deixa de funcionar como deve.

Numa relação destas não existe amor. Em nenhum dos lados!

E como é totalmente inacreditável que se fique numa situação destas, admito que a nossa razão se apague, que o nosso cérebro se desligue. Não encontro outra explicação para ter ficado uma e outra vez.

Até que um dia voltei a mim, fiz o que deveria ter feito logo na primeira vez e o que sempre pensei que faria, antes de passar por lá.

Felizmente, hoje a lei já mudou e é crime público, o que faz uma grande diferença, a todos os níveis! Qualquer pessoa pode fazer a queixa e a vítima não a pode retirar.

Temos de ter bem presente que é um atentado, não só à agredida, como a nós todos e se conhecemos alguém que está a passar por isso, é nosso dever e obrigação denunciá-lo.

Não é assunto privado, não é "entre eles".