dezembro 21, 2008

87 anos

A tia Lourdes, tal como a minha mãe (as duas únicas filhas dos meus avós maternos), teve uma educação bastante diferente da que era dada habitualmente às meninas de família. Ambas seguiram do liceu para a universidade e ambas concluiram, brilhantemente, cursos pouco procurados por mulheres, nessa época: Medicina a minha mãe, Belas Artes a tia Lourdes. Filhas de um advogado exigente e de gostos sofisticados - respirara ainda o crepúsculo do fausto proporcionado pelo cacau de São Tomé e Príncipe, vindo da roça da família - do pai receberam essa liberdade e esse desafio: serem autónomas, terem uma profissão. Da minha mãe falarei noutra altura destes apontamentos, hoje a ribalta é da tia Lourdes.

Desde muito cedo revelou talento para o desenho. Depois da escola António Arroio, estudou pintura e escultura em Lisboa e depois no Porto, onde o curso superior era mais conceituado. Foi contemporânea dos maiores nomes das artes plásticas nacionais, hoje considerados grandes mestres. Aluna aplicada e muito elogiada por professores e colegas, pelo traço forte e cheio de personalidade, acabou o curso com notas altíssimas e esperava-a um futuro sorridente no mundo que escolhera e onde se sentia como peixe na água. Praticou em ateliers famosos e tinha amigos divertidos e boémios, apesar do recato a que o seu estatuto e uma sociedade fechada a obrigavam.

Mas a vida trocou-lhe as voltas, como muitas vezes acontece. Ao escritório da Rua de S. Nicolau, na Baixa, onde o meu avô exercia advocacia, foi parar um estagiário muito especial: um goês, brâmane orgulhoso e de olhar penetrante, de seu nome Prabacar Visvambor Canencar (um nome que originou saborosas e infindáveis versões nas bocas por onde passava, na nossa família). Era um de muitos irmãos, todos rapazes, enviados pelos pais para a Europa e Estados Unidos para estudar, o que em Pangim não teriam conseguido fazer com igual sucesso. Ele foi o único que rumou a Portugal, para estudar direito. E a tia Lourdes apaixonou-se por aquele homem diferente, um novo desafio que lhe mudou a vida por completo. Correram o mundo em comissões de serviço dele, como juíz: por África e Ásia, dois anos em cada sítio onde os portugueses tinham posto o pé e a que chamaram seu, séculos antes.

Perdemo-los de vista por muito tempo, mas um dia voltaram. No porão do navio que os trouxe de Timor, uma enorme quantidade de quadros que a tia Lourdes pintara, bebendo nas mil cores e formas exóticas a inspiração daqueles anos de globetrotter. Faria uma grande exposição, quando chegasse a Lisboa. De lá, preparara as coisas e tudo estava a postos. Ainda tinha bons contactos. Mas o desastre aconteceu: o porão inundou-se e a água salgada arruinou as delicadas telas e aguarelas que ansiavam pelas luzes de uma galeria de arte. E já não houve exposição. E, muito pior do que isso, a tia Lourdes nunca mais quis pintar ou esculpir, fosse o que fosse. Começou a dar aulas de desenho e foi uma professora dedicada, por muito tempo. Hoje tem oitenta e seis anos, e continua uma mulher de armas.
A tia Lourdes fez hoje 87 anos e ainda está para as curvas. É uma porreirona, tem um bom gosto natural que nos deixa a todos de quatro e um bocadinho de mau-feitio (pouco). Ainda guia o seu carro pelas ruas de Sintra (apesar de já nos provocar alguns ameaços de síncope...), ocupa-se com visitas a museus, comissões de conservação do património - ou coisa parecida - e com a sua varanda, que é a mais bonita de Sintra, e passa a vida a laurear a pevide com as amigas, todas muito mais novas que ela.
Pagou-nos hoje uma jantarada, como faz todos os anos. Este ano não lhe apetecia festejar (sente muita falta da minha Mãe), mas aparecemos-lhe todos à porta sem avisar e obrigámo-la a sair. Refilou, mas adorou. Parabéns!
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13 comentários:

Pedro disse...

:) Que inveja de não ter uma tia Lourdes na família! Parabéns!

João Paulo Cardoso disse...

Muitos Parabéns para a tua tia Lourdes, ainda uma jovem ao pé do Manoel de Oliveira.

Beijos.

CoRa disse...

Que lindo texto da Ana (tua irmã?) e que linda história e que tia mais supimpa! Parabéns a ela e a ti. E a mim tb, ja que hoje é 22 e entro eu nos meus 48, aiaiai... Olha respondi o desafio musical da Teresa, que veio de ti com títulos de cançoes do Caetano... Tu que moraste aqui, gostas dele? beijinhos

Maria Feliz disse...

Amiga,

Não sei se me expliquei suficientemente bem, não sei se entendeste... AMEI a tua prenda! Pelo bom gosto, por ser uma coisa que preciso e por ser a minha cara.

Beijos de parabéns à Tia Lurdes.

Para ti, uma beijoca no sítio do costume:-)

Fatyly disse...

Uma simpática senhora e muito bonita.

87 beijos para ela:)

Leonor disse...

Que bonito, Mad

Mad disse...

Pedro,
A gente aluga-a. LOL!

JP,
Bom ponto de vista.

CoRa,
O texto é da minha irmã. E sim, AMO o Caetano desde muito antes de ir para o Brasil. E PARABÉNS!

Maria,
Tamém não era preciso um agradecimento público...

Fatyly,
:)

Leonor,
:)

BOM NATAL A TODOS!

JS disse...

Eu também gostava de ter uma Tia Lourdes. Parabéns pelo post e parabéns para a Tia Lourdes!

Pedro disse...

comecei a ler e reconheci, já tinha lido o texto anteriormente, depois fui espreitar o link e confirmei; delícia, tudo

parabéns

Diabba disse...

Bem essa tua tia... ui ui

Ela não quererá ser a recepcionista do Inferno? É que com aquela carinha de anjo papudo conseguia caçar mais almas que eu!! (além de ter um ar - e tenho a certeza que não é só ar - elegantíssimo, coisa que fica sp bem em qualquer recepção infernal)

enxofre natalino

Nota: é melhor não lhe falares desde meu convite de trabalho, não vá ela pensar que o que tu queres é que ela quine! hihihihihihihi

João Paulo Cardoso disse...

Cara Madalena,

Para o caso de não digitarmos mais, um Feliz Natal deste amigo virtual, mas sempre, sempre verdadeiro.

É a mensagem-standard que estou a deixar a todos os meus amigos blogosféricos.

Beijos.

Patti disse...

Parabéns à tia Lourdes e adorei o texto da Ana.

Um feliz Natal para ti e óptimas entradas em 2009.

ana v. disse...

Quero esta fotografia, não tenho... tenho uns cromos para a troca!
Bjs