agosto 05, 2008

Manifesto


Este blog nunca foi, não é e nunca vai ser uma democracia. Nele vigora, como sempre vigorou, uma total liberdade de expressão - da minha parte, obviamente.

Critiquem-me, insultem-me, be my guest - ou provem que estou errada. Mas não se esqueçam de que esta é apenas a opinião de uma emigrante que, não por acaso, vê concordância em todas as pessoas que tiveram a mesma experiência - as cujas, obviamente, têm efectivamente dois dedos de testa.

Vai haver consequências. Eu sei. O Capitão-Mor, meu colega de sina, fez o mesmo há uns tempos atrás e teve-as. Mas ele, apesar de cáustico q.b., foi extremamente bem educado (demais, na minha opinião) e acredito que a sua prosa técnica e elegante desmotivou a maioria dos seus críticos. Não será o meu caso. Como se diz no meu Ribatejo, tenho o coração um metro fora da boca. Por conseguinte, desde já peço desculpas à minha irmã, que mantem uma vastíssima rede de amigos brasileiros que são, obviamente, honrosas excepções à regra e, desculpem dizê-lo, precisamente os que a confirmam.

Abaixo transcrevo parte de um mail que mandei a uma grande amiga minha há uns meses atrás. É da falta dela, e/ou de gente como ela, que me queixo. Passado quase um ano, e a menos de um mês de me ir embora definitivamente do Brasil depois de quase oito anos, olho para trás e vejo, sem surpresa, que nenhum dos meus sentimentos mudou - obviamente porque as circunstâncias que os causaram também não mudaram.

aspas1


Olá, P. (...)

Desculpa a ausência, mas tenho andado numa roda viva com um cão adoentado, camarão que não cresce, ração que chega com uma semana de atraso, luz que falta 24 horas seguidas (...), tudo ao mesmo tempo. Enfim, o divertido dia-a-dia de quem anda cá fora a lutar pela vida.

Mas tá-se bem, àparte as dificuldades, que têm sido muitas e variadas. Pelo menos já tomámos a decisão conjunta e definitiva de desandar e ir para aí sofrer como vocês com a inflação, a burocracia (se vocês acham que há burocracia aí, experimentem aqui), o desemprego generalizado, etc. Nem que seja para variar de cenário, que aqui sofre-se com a incompetência como profissão, a desonestidade como ambição, os calotes como desporto, a lei como piada, pois só é cumprida para servir os interesses de quem paga mais por isso, os complexos de quem não é “europeu” em relação aos que o são, os preconceitos de ser estrangeiro - e rico, por analogia (o que, por sua vez, isenta automaticamente um brasileiro que se preze de ter que pagar o que compra e/ou deve - e esta moral distorcida é, talvez, o que me me torna mais insegura neste país – como é que se vive sem normas?!).

As coisas que gosto aqui? O clima, o meu alpendre, o espaço que tenho e que me permitiria ter 20 cães e 10 cavalos se me apetecesse, as viagens de barco pelo rio, a incrível facilidade com que tudo cresce e o luxo de ter uma empregada 8 horas por dia e 6 dias por semana que me custa praticamente nada. E também a música, fantástica. E mais nada. É triste conseguir resumir o melhor de um país em exactamente 61 palavras, não achas? Ainda mais quando usamos adjectivos, pronomes e outras ajudas gramaticais. Não consigo não pensar: se tivesse feito uma "check list" esta não conteria mais de 7 tópicos...

Estou cá há 7 anos e o meu círculo de amizades resume-se, mal e porcamente, a 2 portugueses e respectivas gaijas (que eu aturo por deferência), 2 escoceses (graças a deus ainda sem gaijas), um casal de belgas, a minha empregada Pazinha, que adoro incondicionalmente, mas cujo marido, por outro lado, me dá uma trabalheira desgraçada, e uma alemã que ainda não decidi se é porreira ou se já está contaminada pelo namorado inevitavelmente brasileiro. E é só. Não fiz um(a) amigo(a) brasileiro(a), à excepção talvez da X., razoavelmente viajada e civilizada, mas para quem eu normalmente não tenho paciência para aturar porque, apesar de ser óptima pessoa (e por isso se distinguir dos habituais cravas), não tem grande interesse intelectual. Os meus dias são uma sucessão de:

  1. decidir o que fazer para o almoço e para o jantar;
  2. ver televisão;
  3. ler;
  4. escrever (pouco);
  5. brincar com os bichos e, eventualmente, dar-lhes banho;
  6. inventar hobbies parvos para ocupar o tempo, tais como (e isto é só uma pequeníssima amostra dos extremos a que já cheguei...) ponto cruz (iniciais em roupa de bébé que depois dou a quem precisa); bijuteria (este vai ficar porque me dá imenso gozo), pintura (decidi que precisava urgentemente de um curso técnico e parei, que remédio...); crochet (pegas de cozinha e pouco mais); tricot (camisolas?, num clima destes?); jardinagem (tenho uma hortinha amorosa onde cultivo o que não consigo comprar aqui perto: alho francês, rúcula, courgettes, agriões, etc) e coleccionar receitas de cozinha da televisão (depois mando a Pazinha fazer, claro).

... e por aí fora. Consegues começar sequer a imaginar o deserto cultural em que estou metida? Agora multiplica por 100 e talvez chegues perto. Trouxe um monte de livros para cá das três vezes que fui a Portugal em sete anos – há uma única livraria em Parnaíba, mas o que consegue lá é Dan Brown, John Grisham, auto-ajuda e espíritas (aaaargh!) – e, por mais que eu goste de Fernando Pessoa e Florbela Espanca, já estou um bocadinho cansada de ler os mesmos livros. Preciso urgentemente de me actualizar. Não tenho internet em casa, só quando vou à cidade. Tá bem que tenho 60 canais de televisão, mas não tenho DVD, nunca tive: acreditas que a minha tia Lurdes, de 85 anos, teve que me ensinar a mexer no dela, quando estive aí há uns meses?? Continuo a ouvir a mesma música de sempre. Para mim, música contemporânea de qualidade ainda é Ben Harper. E o meu telemóvel não tira fotografias. Para quê?, tenho 5 máquinas fotográficas (vá lá, uma delas é digital...) que não uso. E ainda acho que cor-de-rosa é a cor da moda.

Há algumas coisas boas que resultaram deste meu isolamento forçado. Acho eu. Em alguns aspectos, estou mais tolerante com a humanidade em geral: parto do princípio de que todos os brasileiros são burros e portanto sou eu, como ser superior, que tenho que ter mais paciência. Noutros aspectos não: já não me levanto para dar lugar a velhinhas - se estivessem no meu lugar, jamais lhes passaria tal coisa pela cabeça - por uma gringa, jamais! -. Já não acho que pessoas estúpidas deviam ser mortas à nascença (pelo menos não todas), até porque isso acabaria com 95% dos brasileiros e era chato, convenhamos. Por outro lado, desenvolvi um “interesseirismo” que não tinha (a este nível de sofisticação, pelo menos) e que me dá um jeitão quando quero alguma coisa, porque já não tenho remorsos. Já não grito por dá-cá-aquela-palha (poupo-me mais), apesar de insultar alegremente cada idiota que se cruza no meu caminho e que tem o azar de me contrariar. Parto do saudável princípio (do meu ponto de vista, claro...) de que, se uma pessoa “dita normal” não for capaz de servir bem à mesa (i. e., de não se conseguir lembrar de um simples pedido de um café e um pão de queijo, e trazer, assombrosamente, depois de confirmar o pedido por escrito, uma Fanta de laranja e um pão com fiambre!), será incapaz de fazer alguma coisa bem feita pelo resto da vida, sendo que o melhor é desenganá-la logo de uma vez: assim não tira o emprego a alguém mais válido e pode logo entregar-se assumidamente à vagabundeagem profissional - ocupação, obviamente, para a qual nasceu. Bónus: estou altruisticamente a fazer um grande favor à sociedade brasileira, ao livrá-la de um idiota, ladrão, inútil e incompetente fardo.

Estou mais sarcástica? Nããããão... estou mais velha, infinitamente menos paciente, absurdamente menos tolerante. Acredito firmemente que o Grande Povo Português é o mais trabalhador, simpático e honesto do mundo. Acho que os brasileiros deviam ser todos mortos à nascença, à excepção talvez das putas (excelentes profissionais: o talento é nato) e dos publicitários (esta é em tua honra). Sem ofensa - e por seres quem és, tenho a certeza que, pelo contrário, darás uma valente gargalhada - concordarás comigo que as duas profissões se tocam na área da "sedução"...

Bom, para teres uma ténue idéia do que eu estou feliz por viver nos trópicos, acho que isto deve ter chegado. Cenas dos próximos capítulos: como tentar criar camarão num país onde aparece um vírus desconhecido no planeta, e onde todos, inclusivamente o governo, fingem que "no pasa nada", e não dar em doida.

Beijos grandes, Mad (literalmente!) aspas1

12 comentários:

Alf disse...

Eu, cá por mim, fiquei absolutamente esclarecido.

Volta rápido, sff.


Beijo.

Mad disse...

Dia 29. For sure.

Diabba disse...

Gaija, tu esconde-te pah. Olha que se te apanham fazem-te a folha.

Vá já não falta muito, pensa no Bartolomeu!

beijo d'enxofre

ana v. disse...

Infelizmente tudo isso é verdade, no que toca à corrupção. Os meus amigos brasileiros são os primeiros a reconhecê-lo, com pena pelo país que é o deles. Mas cuidado com as generalizações: no Brasil há gente inteligente, culta, interessante, produtiva e com vontade de mudar as coisas (é possível que no Nordeste, onde tu foste parar, sejam mais raros...). E não penses que aqui está muito melhor: desde há 8 anos a corrupção aumentou a olhos vistos, vais ver. E a produtividade não melhorou muito, infelizmente.
Enfim, sempre estás na terrinha... mas garanto que te vai passar esse nacionalismo saudoso num instante!

Beijos

(manda mail com novidades e pormenores da chegada)

Mad disse...

O problema não é só a corrupção. Já aprendemos a contorná-la com gritos e ameaças de telefonar para a embaixada e/ou para um advogado, e temo-nos safado sempre sem pagar propinas. O pior é que este povo não quer trabalhar nem à lei da bala. E ainda por cima aprenderam com o Papai Lula que não precisam: há subsídios para tudo aqui e há uma geração inteira que não sabe o que é ter de trabalhar para pagar as contas. Há 2 ou 3 anos os subsídios ainda eram dados em espécie, mas agora até créditos se podem fazer sobre eles. Por isso agora compram-se motas, televisões, frigoríficos... e depois vão lá a casa chorar porque não têm dinheiro para levar a filha ao hospital.

Enfim. Tudo isto acaba dia 29.

Patti disse...

Ui, que até a mim me doeu! Eu adoro essa terra, essa gente, essa paisagem, essa comida e primeiro que tudo essa música.

Mas eu aí só sou uma simples turista, só faço uma pequena ideia da realidade para quem ai vive.

Vejo-te triste e desiludida. Mas a vida não é só uma. São várias, Muitas. E cá, voltarás a ficar bem novamente.

Anónimo disse...

Cuidado. Na minha mui tendenciosa opiniao, Portugal nao eh muito mais do que o Brasil da Europa.

Alias, acho que Portugal ja nem eh o pais mais a Oeste da Europa mas sim o pais mais a Norte de Africa.

Arranja juizo algures e vem mas eh pra ca!

nf

Mad disse...

Olá, nullfame (és, não és? Não sabia que me lias!).

O teu primo JP uma vez disse-me que nós (tu e eu) éramos opostos um do outro: eu comparo o péssimo do Brasil com o bom que há em Portugal; tu fazes exactamente o contrário.

Quanto ao juízo, chego dia 29 (eh eh eh).

Anónimo disse...

Cara mad,

Devia ter-me expliado melhor, ou pelo menos revelar onde estou. Eh que quando digo pra vires pra ca, refiro-me - obviamente - as terras de Sua Majestade e nao aquela fasquia de terra a beira mar amaldicoada!

Se olhares pras bandeirinhas das tuas estatisticas, eu sou uma das britanicas que anda la as voltas!

Quanto ao ler, agrada-me tudo o que eh de qualidade ;)

nf

ps - ja ia enviar o comentario mas nao antes de deixar um grande bem hajas por nao me obrigares a teclar aquelas combinacoes maradas de letras - um exemplo a seguir pela amiguinha Flora!

Mad disse...

nf,

Eu sabia que estás no UK, mas esqueci-me de dizer. Quem sabe ainda apareço aí?

Bjs.

PS - As letrinhas são o que há de mais irritante na blogosfera, bastante mais irritantes que os comentários automáticos, quanto a mim. Mas cada um... e sabes que a Flora é do contra.

Pedro disse...

tenho alguns amigos brasileiros e, a não ser um, o Marcos Magalhães, sofrem todos do que tardiamente identifiquei como o complexo do colonizado: sendo inteligentes e cultos e interessantes, a conversa acaba sempre por descambar para algum tema que eles repescam para colocar em evidência a estupidez do português ou qualquer outra coisa que deixe os portugas presentes desconfortáveis; e isto feito entre sorrisos e amizades e diálogos; ao ler este post lembrei-me de algumas conversas e fui-me rindo de algumas tristes figuras e incomodidades

obrigado

Mad disse...

De nada, Num Relance. Concordo inteiramente quanto ao complexo do colonizado. Seja bem-vindo.