Conheci o Federico Moreno há uns anos aqui no Brasil. É um espanhol de Madrid, de 50 e poucos anos, com um estilo de vida que invejo profundamente. É um navegante solitário, daquelas pessoas para as quais o único chão seguro é o do seu barco e tem um ar triste e distante de quem, de tanto se encontrar com o essencial da vida, parece sempre distraído. Viaja pelos oceanos há mais de 20 anos, faz amigos em lugares remotos e tem a arte de cultivar essas amizades pelo resto da vida. Passou mais de metade da vida a partir e a chegar e já deu várias vezes a volta ao mundo, tanto sozinho como acompanhado. É a pessoa mais em paz com ela própria que conheço.
É um homem com uma vida maior, embora essa vida possa ter, para algumas pessoas, uma aparência menor. Depois de uma existência em Madrid que ele diz sem história – à excepção de ter tido um filho, de quem se orgulha profundamente, que hoje é médico e que o visita duas vezes por ano – decidiu, antes dos 30 anos, vender a casa, construir com as próprias mãos um veleiro e sair por esse mar fora, sem data para voltar. Foi o que fez. Encheu o barco de latas de conserva, frascos de aspirinas, material de pesca, cadernos de desenho e todos os livros que tinha, e como queria testá-lo, nada melhor do que sair sozinho para pássar o Cabo das Tormentas, a ver se podia confiar nele. Podia.
Sem instrumentos de espécie nenhuma, pois não tinha dinheiro para os comprar, velejava com base no instinto, de sextante, régua e cartas marítimas em punho, à antiga. ‘No hay outra forma. De otra te matas.’, diz seriamente. Hoje tem um VHF, que só funciona a poucas milhas da costa, e que só comprou porque o filho o obrigou. Diz que não são os instrumentos que o vão salvar, mas sim a sorte, a experiência e a fé em Deus, que (re)descobriu um dia a meio de uma tempestade ao largo das Bahamas. Quando lhe pergunto se não tem medo de morrer sozinho, responde tranquilamente, com um sorriso de velho lobo do mar: ‘Sea lo que Dios quiera’. Vive a vida assim, ao sabor do vento. Não é capaz de estar muito tempo no mesmo sítio. Nos muitos serões que passámos no nosso alpendre, filosofava horas a fio enquanto saboreava um charuto e criticava o Brasil: ‘Este país es lo más pequeño de alma que hay visto. Mira, y conocí muchíssimos!’, e pelo meio contava aventuras incríveis, como a de um amigo que se operou a ele próprio ao apêndice no meio do Atlântico, com instruções dadas em directo por um médico através do rádio. ‘Lo hacias tu también: la alternativa es morir’, explicava calmamente, como se não fosse nada.
Quando precisa de dinheiro para mantimentos ou para arranjar o barco, pára uns meses num porto e faz o que fôr preciso, desde lavar barcos, arranjar motores, fazer travessias oceânicas com barcos cujos donos só velejam dentro de marinas. Como todos os marinheiros solitários, é um mecânico prodigioso, habituado a desenvencilhar-se com o que tiver à mão. Poupou-nos mais que uma vez a despesa de ter que chamar alguém, tanto para arranjar um frigorífico, como para pôr uma bomba de água a funcionar, sem mais do que uns alicates, uns arames e muita sabedoria.
Há dez anos, das muitas vezes que passou pelo Brasil, teve mais um filho. A partir dessa data, está fora seis meses por ano e aqui no resto do tempo, preocupado com que este filho se crie sem saber o que significa ser meio-espanhol (ou semi-deus). Entra com o barco no Delta, atraca numa cidadezinha aqui perto e passa seis meses com o Pedrinho, ensinando-lhe pacientemente história espanhola e mundial, literatura, arte, filosofia, línguas, astronomia, e até boas maneiras, tudo com base na sua biblioteca ambulante, que inclui desde Tolstoi à colecção completa de Tintin e Astérix em francês, passando por Jorge Amado, Descartes, Agatha Christie, em português, espanhol, francês e inglês. Diz que o Pedrinho ainda é muito pequeno para o mar, mas que mais uns anitos e leva-o a dar a volta ao mundo para lhe abrir os horizontes.
Há cerca de dois anos, decidiu vender o barco (no Brasil não se pode ter barcos com bandeira estrangeira por mais de um ano, e o dele tem bandeira de Gibraltar) e construir um novo, de bandeira brasileira, para poder estar aqui o tempo que precisa. Rumou à Venezuela, depois de deixar os seus livros e mais algumas coisas que queria conservar à nossa guarda, e desde aí falamos por e-mail.
Um dia há de aparecer outra vez e pode ser que vamos com ele – uma volta ao mundo está na prateleira das coisas que ainda não fiz.
É um homem com uma vida maior, embora essa vida possa ter, para algumas pessoas, uma aparência menor. Depois de uma existência em Madrid que ele diz sem história – à excepção de ter tido um filho, de quem se orgulha profundamente, que hoje é médico e que o visita duas vezes por ano – decidiu, antes dos 30 anos, vender a casa, construir com as próprias mãos um veleiro e sair por esse mar fora, sem data para voltar. Foi o que fez. Encheu o barco de latas de conserva, frascos de aspirinas, material de pesca, cadernos de desenho e todos os livros que tinha, e como queria testá-lo, nada melhor do que sair sozinho para pássar o Cabo das Tormentas, a ver se podia confiar nele. Podia.
Sem instrumentos de espécie nenhuma, pois não tinha dinheiro para os comprar, velejava com base no instinto, de sextante, régua e cartas marítimas em punho, à antiga. ‘No hay outra forma. De otra te matas.’, diz seriamente. Hoje tem um VHF, que só funciona a poucas milhas da costa, e que só comprou porque o filho o obrigou. Diz que não são os instrumentos que o vão salvar, mas sim a sorte, a experiência e a fé em Deus, que (re)descobriu um dia a meio de uma tempestade ao largo das Bahamas. Quando lhe pergunto se não tem medo de morrer sozinho, responde tranquilamente, com um sorriso de velho lobo do mar: ‘Sea lo que Dios quiera’. Vive a vida assim, ao sabor do vento. Não é capaz de estar muito tempo no mesmo sítio. Nos muitos serões que passámos no nosso alpendre, filosofava horas a fio enquanto saboreava um charuto e criticava o Brasil: ‘Este país es lo más pequeño de alma que hay visto. Mira, y conocí muchíssimos!’, e pelo meio contava aventuras incríveis, como a de um amigo que se operou a ele próprio ao apêndice no meio do Atlântico, com instruções dadas em directo por um médico através do rádio. ‘Lo hacias tu también: la alternativa es morir’, explicava calmamente, como se não fosse nada.
Quando precisa de dinheiro para mantimentos ou para arranjar o barco, pára uns meses num porto e faz o que fôr preciso, desde lavar barcos, arranjar motores, fazer travessias oceânicas com barcos cujos donos só velejam dentro de marinas. Como todos os marinheiros solitários, é um mecânico prodigioso, habituado a desenvencilhar-se com o que tiver à mão. Poupou-nos mais que uma vez a despesa de ter que chamar alguém, tanto para arranjar um frigorífico, como para pôr uma bomba de água a funcionar, sem mais do que uns alicates, uns arames e muita sabedoria.
Há dez anos, das muitas vezes que passou pelo Brasil, teve mais um filho. A partir dessa data, está fora seis meses por ano e aqui no resto do tempo, preocupado com que este filho se crie sem saber o que significa ser meio-espanhol (ou semi-deus). Entra com o barco no Delta, atraca numa cidadezinha aqui perto e passa seis meses com o Pedrinho, ensinando-lhe pacientemente história espanhola e mundial, literatura, arte, filosofia, línguas, astronomia, e até boas maneiras, tudo com base na sua biblioteca ambulante, que inclui desde Tolstoi à colecção completa de Tintin e Astérix em francês, passando por Jorge Amado, Descartes, Agatha Christie, em português, espanhol, francês e inglês. Diz que o Pedrinho ainda é muito pequeno para o mar, mas que mais uns anitos e leva-o a dar a volta ao mundo para lhe abrir os horizontes.
Há cerca de dois anos, decidiu vender o barco (no Brasil não se pode ter barcos com bandeira estrangeira por mais de um ano, e o dele tem bandeira de Gibraltar) e construir um novo, de bandeira brasileira, para poder estar aqui o tempo que precisa. Rumou à Venezuela, depois de deixar os seus livros e mais algumas coisas que queria conservar à nossa guarda, e desde aí falamos por e-mail.
Um dia há de aparecer outra vez e pode ser que vamos com ele – uma volta ao mundo está na prateleira das coisas que ainda não fiz.
2 comentários:
Falhei o Frederico por pouco tempo, e tenho pena. deve ser um tipo bem interessante de conhecer.
Bem que historia incrivel a deste homem, fantastico mesmo ;-) no outro dia perguntei ao João Maria se ele queria fazer o mesmo, vendia a casa e comprava um veleiro e viviamos no barco;-) O miudo disse que não, depois não tinhamos garagem para por as pranchas a moto e o carro lol :-( não sabe o que é bom... Beijocas
Joca
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